19/12/2010

Os Cus de Judas M - a pátria irreal

Lisboa
«O certo é que, à medida que Lisboa se afastava de mim, o meu país, percebe?, se me tornava irreal, o meu país a minha casa, a minha filha de olhos claros no seu berço, irreais como estas árvores, estas fachadas, estas ruas mortas que a ausência de luz assemelha a uma feira acabada, porque Lisboa, entende, é uma quermesse da província, um circo ambulante montado junto ao rio, uma invenção de azulejos que se repetem, aproximam e repelem, desbotando as suas cores indecisas, em rectângulos geométricos, nos passeios, não, a sério, moramos numa terra que não existe, é absolutamente escusado procurá-la nos mapas porque não existe, está lá um olho redondo, um nome, e não é ela.» (página 94).
Já me acontecia várias vezes que quando viajava por algum tempo, toda a minha vida anterior parecia-me um sonho e não a realidade. Esquecia a tridimensionalidade dos meus pais, lembrando-me somente de alguns sorrisos, gestos e sons dispersos das suas falas. O meu quarto não me parecia o meu, nem falando dos meus gatos, que totalmente desapareciam da minha memória. O mesmo aconteceu com o protagonista d' ''Os Cus de Judas'' quando ele estava em África. Tudo o que deixou em Portugal lhe parecia irreal: a sua casa, a sua filha, as ruas de Lisboa, e a sua mulher nem aparecia nas suas lembranças...
É interessante que esquecemos tão depressa, talvez seja um mecanismo útil nos momentos graves como a morte de uma pessoa amada, para não sofrermos demais. Mas no caso do protagonista do livro, as lembranças da casa e da família poderiam ser um tipo de consolação, não acham? E a irrealidade do passado ainda piorava a sua condição psíquica, e foi ela que levou à separação dele com a sua esposa... E o que vocês pensam?

Os Cus de Judas L - Os relógios de Dali

Salvador Dali
A Persistência da Memória, 1931
«O excesso de luz do aeroporto impedia-me de me confrontar nos vidros com  a minha silhueta hesitante, inclinada como uma cana de pesca para o peixe gordo da mala, com a gravata que as muitas horas de avião haviam decerto desviado da bissectriz dos colarinhos, transformando-a num trapo mole como os relógios de Dali, com as rugas que se acumulavam em torno das pálpebras, à maneira dos vincos concêmtricos de areia dos jardins japoneses; entre o homem que voltava sozinho da guerra à sua cidade e caminhava através de cachos de estrangeiros indiferentes, e nós que nos dirigimos para a saída do bar ao longo de um corredor de nucas e perfis cuja monótona diversidade os aproxima dos manequins da Baixa, petrificados em acenos imóveis de uma inutilidade patética, há apenas a diferença insignificante de alguns mortos na picada, cadáveres que você não conheceu, as nucas e perfis nunca viram, os estrangeiros do aeroporto ignoravam, e que, portanto, são inexistentes, inexistentes, percebe?» (página 81).
Voltando à Lisboa o protagonista do livro percebe, que todo o seu sofrimento era inútil. Ninguém vai o agradecer, ninguém o pode compreender. Ele está sozinho com as suas lembranças da guerra cuja crueldade os outros ignoram, e com as lembranças de mortos que para os lisboetas são inexistentes, porque eles nunca os conheceram. O mundo dos portugueses é totalmente privado de qualquer assunto da guerra em África. E o protagonista vê-se desfeito (psiquicamente) não só por causa da viagem muito longa, mas no primeiro lugar porque já não aguenta mais a guerra que não sai da sua cabeça. Ele está cansado, mole, desfeito, como os relógios de Dali que têm consistência de queijo aquecido, sem forma. Penso que o protagonista seria capaz de fortalecer a sua consistência e começar a nova existência se fosse apreciado pela sociedade; mas, infelizmente, ela nem se dá conta da sua chegada e nem pensa em tentar compreender o protagonista. É mais uma desilusão do homem já bastante humilhado pela vida e castigado por causa da escolha que ele tinha feito na juventude, apoiado pela família: a decisão de ir lutar em África.
Penso também, que a alusão à obra de Dali ''A Persistência da Memória'' não foi feita por acaso. Há inúmeras obras deste artista onde se pode encontrar objectos que perdem as suas formas, mas este quadro tem também um título significante. Sugere que o estágio da alma do protagonista tem z ver com a memória: memória da guerra, dos momentos crúeis, que não querem sair da sua cabeça e influenciam por isso a sua psíquica fortemente.

13/12/2010

Os Cus de Judas J - um pouco sobre a Polónia: Chopin

 
Fryderyk Chopin


 «A minha terra é onde o Marechal Saldanha aponta o dedo e o Tejo desagua, obediente, à sua ordem, são os pianos das tias e o espectro de Chopin a flutuar à tarde no ar rarefeito pelo hálito das visitas (...)» (páginas 79-80).

Mísia
A presença de Chopin no livro Os Cus de Judas comoveu-me muito, porque é um dos símbolos do meu país: da Polónia. Isso faz me lembrar duma outra pessoa que vem de Portugal, e que mencionou a presença de Chopin na sua vida (entrevista). Foi Mísia, cantora portuguesa, que deciciu neste ano participar no XIV Festival de Ludwig van Beethoven na Polónia, e cantar canções inspiradas pela obra de Fryderyk Chopin. Ela disse que a sua mãe gostava muito da música de Chopin. «From then on, Chopin has always been with me. Romantic and intemporal… So Polish and universal… sometimes even a little bit mine too…». O projeto de Mísia foi chamado Our Chopin Affair. Além de Mísia ser principalmente a cantora de fado, ela deciciu não arranjar Chopin deste modo, e a única referência ao fado podia ser ouvida na canção Dumka. Segunto Mísia, o fado e a música de Chopin têm algo em comum: a nostalgia misturada com a gota de alegria, e que ambos estão muito ligados com o lugar em que apareceram, e ao mesmo tempo são universais.

A presença de Chopin nas obras de artistas e escritores portugueses agrada-me muito porque é um símbolo da Polónia, e assim ambos os países podem conhecer-se melhor, interessar-se por si mesmos: os Portugueses saber um pouco da cultura polaca e os Polacos interessar-se pelo fado, e outros aspectos da portugalidade. É isso que nós, estudantes, queremos fazer num outro blogue: Luzo-Fuzo.

Os Cus de Judas H, I - a anti-Última Ceia e a insônia


Leonardo Da Vinci, A Última Ceia (1498)
A Última Ceia aparece nas evangélias como a última refeição do Cristo antes da sua morte. A obra mais famosa que trata do tema é o afresco de Leonardo Da Vinci. (1498).
«Formávamos a cada jantar a anti-Última Ceia, o desejo comum de não morrer constituía, percebe?, a única fraternidade possível, eu não quero morrer, tu não queres morrer, ele não quer morrer, nós não queremos morrer, vós não quereis morrer, eles não querem morrer (...)» (página 62).
Este fragmento mais uma vez mostra a crueldade da guerra, a realidade em que a morte pode chegar num momento, quando menos a esperamos.

Porque a Anti-Última ceia? A Última Ceia foi um tipo de despedida do Cristo com os alunos, quando a morte foi algo já inevitável e domesticado. As refeições dos soldados foram diferentes, porque ninguém sabia se vai ver os seus amigos mais uma vez, e a morte, inevitável durante a guerra, não apontaria quem vai levar consigo, e por isso todos estavam inquietos. O Jesus foi calmo, porque foi ele que escolheu a morte, enquanto os soldados não queriam morrer, o que é muito bem visível em citação acima.

A guerra e as inquietações que causa levara o protagonista à insônia, que dura mesmo quando ele volta à casa em Portugal. «Há quanto tempo de facto não consigo dormir?» - pergunta ele (página 67). Sempre ele sente esta inquietação, por isso a guerra faz com que é impossível para o protagonista atingir a paz dos tempos anteriores à guerra (é mais uma justificação para eu colocar a não-chegada à paz no meu esquema da viagem do herói).

10/12/2010

Os Cus de Judas E, G - Larvas de Bosch


 Hieronymus Bosch
O Jardim das Delícias Terrenas
Museu do Prado, Madrid
Quando vejo as obras de Bosch, sempre sinto inquietação misturada com repugnância, porque os homens pintados nas telas são criaturas feas e sem forma, como se não tivessem ossos, e na verdade parecem larvas, como as descreveu António Lobo Antunes no livro Os Cus de Judas (página 39).

Assim o protagonista vê os seus pacientes, leprosos, de quais trata em Gago Coutinho. Deste modo inicia a descrição turpista da condição destes homens:
«Dezenas de larvas informes principiavam a surgir, manquejando (...), larvas de Bosch de todas as idades em cujos ombros se agitavam, como penas, franjas de farrapos, avançando para mim à maneira dos sapos monstruosos dos pesadelos das crianças, a estenderem os cotos ulterados para os frascos de remédio» (página 39)
O mundo Boschiano torna-se real em África. Isso não tem a ver somente com os pacientes, mas com todo o ambiente pelo qual o protagonista é sufocado e humilhado de tal nível que ele próprio se sente como uma das criaturas da tela de Bosch. Assim não é possível viver de modo humano. Bem ilustra isso a citação:
«Você (...) era capaz de respirar dentro de um quadro de Bosch, sufocada de demónios, de lagartas, de gnomos nascidos de cascas de ovo, de gelatinosas órbitas assustadas?» (página 52)
É mais um exemplo de naturalismo no livro Os Cus de Judas. O naturalismo compreendo não como o corrente na literatura de século XIX, mas como o modo brutal mas fiel de mostrar a realidade dura; também a capacidade de descrever situações difíceis sem omitir elementos drásticos, e a tentativa de mostrar a dureza da - neste caso - guerra. António Lobo Antunes, na minha opinião, não escapa de descrever a realidade apoiando-se nas obras da arte, pelo contrário: os quadros que ele menciona servem bem para os leitores poderem imaginar o pesadelo da situação que não conhecem. Uma mera descrição da guerra não seria tão chocante, porque algém que não sobreviveu nenhuma guerra não poderia compreender os sentimentos do protagonista. O quadro que todos podem ver e que causa emoções fortes e parecidas como as que sente o protagonista fazem com que os leitores possam se melhor indentificar com ele.

Um truque parecido podemos encontrar na poesia de Tadeusz Różewicz, por exemplo no poema ''Warkoczyk''. Em vez de descrever a dor dos que foram matados em Oświęcim e a tragédia das suas famílias, o poeta descreve uma trança de uma menina morta de tal modo, que comove muito os leitores - porque é uma imagem que todos são capazes de imaginar, enquanto a realidade de campo de concentração não é imaginável para quem não a conhece.

06/12/2010

Os Cus de Judas - a viagem do herói

A viagem do herói.
Inspiração: Campbell, Joseph (1949): The Hero of a Thousand Faces.
Joseph Campbell criou um esquema universal da estrutura dos mitos, mostrando nele a viagem do herói. Baseando naquele esquema inventei um esquema novo que mostra a viagem do protagonista d'Os Cus de Judas.

No meu esquema existe uma divisão do mundo para o conhecido e o desconhecido, mas compreendo-os diferentemente do que o autor do esquema do ''monomito''. Para mim o mundo conhecido é ao mesmo tempo somente uma imagem da realidade que está na mente do protagonista. O regime salazarista e os ideais da família criaram o mundo do protagonista d'Os Cus de Judas, que antes da sua viagem acreditava que a luta em África foi precisa e que a experiência deste tipo vai torná-lo num homem verdadeiro.
Queria sublinhar ainda que tudo o que nos rodeia tem um impacto grande na nossa visão do mundo. Por isso por exemplo mesmo quando algém está contra o regime político em que vive, esta situação sempre o influencia. O mesmo acontece com a família, os amigos, os mídia - o homem não é impermeável, por isso cada pessoa tem a sua visão do mundo diferente, e não se pode dizer qual delas é a mais verdadeira. A realidade pura fica sempre desconhecida.

O protagonista d'Os Cus de Judas decide deixar o mundo conhecido, ou, melhor, a sua idea do mundo conhecido, e viajar para a África. O começo da viagem é o início das transformações da sua psíquica, e o protagonista chega ao ponto de abismo (quando chega à África, reconhece a situação e fica desiludido, porque os seus ideais tornam-se inválidos). É por isso que marquei este ponto como a ''Desilusão'' (a inspiração foi o esquema da Ola Józiak).

Este momento em que o protagonista compreende que o mundo em que acreditava era falso, é o ponto para as transformações da sua psíquica se tornarem mais rápidas e profundas. Para mostrar a importância destas mudanças, dei no esquema um exemplo: o protagonista já não é capaz de distinguir o que é bom e o que é mal, porque o mundo de todos os seus ideais se tornou nulo.

A confusão que sente o protagonista leva o ao ponto em que as transformações da sua psíquica se tornam fixas. Estabelecem-se na sua cabeça permanentemente, porque o protagonista nunca mais vai ser capaz de acreditar de novo nas suas crenças anteriores por causa da experiência contrária.

Quando regressa da África, é um homem diferente. Há um trecho que mostra bem as dificuldades que ele encontra em Portugal depois da guerra, quando há uma briga entre ele e as pessoas, quando ele se sente como um animal feroz, e uma mulher diz-lhe que todos que voltam da guerra são como ele: bárbaros e sem civilização. 
o discurso
Outro fragmento diz que o protagonista não acredita mais na realiadde que o rodeia, e observa os vizinhos felizes e inconscientes quando abrem as portas nem pensando que estas casas poderiam não pertencer a eles. Tudo para eles é óbvio e natural - assim como era o mundo do protagonista antes da sua viagem. Ele, quando regressa, pode somente tentar viver duma forma considerada como normal, mas as inquietações nunca lhe vão permitir atingir o ponto da paz em que viveu antes da partida.

Para o esquema não ficar muito complicado, decidi fazer um esquema mais detalhado do discurso. A linha recta é a mesma que vai no grande esquema (desde o regresso até o futuro). Queria mostrar aqui que o protagonista tenta atingir o nível da paz anterior, fazendo várias relações com o mundo da arte que conhece, e que lhe parece mais estável. Infelizmente, as suas tentativas nem sempre o levam mais perto da paz interna, porque às vezes a sua raiva muito visível ainda mais o inquieta, como no caso descrito aqui. Em outros casos, como já tinha mencionado várias vezes, a sua escrita e as invocações das obras de arte conhecidas são para ele como uma terapia.

22/11/2010

Os Cus de Judas D - Portugal dos Pequeninos

Portugal dos Pequenitos - a entrada
Notaram que além das referências constantes ao Jardim Zoológico, muitas vezes aparecem no texto do livro relações ao Portugal dos Pequeninos? Ambos os lugares são relacionados com a infância. Acham que deste modo o protagonista volta aos tempos mais felizes da sua vida, quando ainda não sabia o que é a guerra e ninguém o forçava para tornar-se um homem verdadeiro? Ou existe outra explicação deste fenómeno? Eu não tenho certeza, mas isso pode ser um tipo da terapia, para lembrar-se de que a existência não tem de ser dura e cheia de dificuldades, e que ele já experimentou uma vida calma e sossegada.

21/11/2010

Os Cus de Judas C - um céu de estrelas desconhecidas

«Duas coisas que me enchem a alma de crescente admiração e respeito, quanto mais intensa e frequentemente o pensamento dela se ocupa: o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim.»
- Fonte: Immanuel Kant, "Werke in sechs Bänden" [Obras em seis volumes], capítulo "Kritik der Praktischen Vernunft" [Crítica da Razão Prática].
São palavras de Immanuel Kant, um filósofo alemão (1724 - 1804). Segundo ele, o céu sobre o homem e a lei moral dentro dele são a prova de que existe um deus sobre o homem e também dentro do homem.

Lembrei-me desta frase quando li seguinte fragmento do livro Os Cus de Judas:
«Lá, fora, um céu de estrelas desconhecidas surpreendia-me: assaltava-me por vezes a impressão de que haviam sobreposto um universo falso ao meu universo habitual (...)»

- António Lobo Antunes, Os Cus de Judas, p.28
Este trecho descreve o que sentia o protagonista do livro quando chegou à Luanda, que era um sítio completamente novo para ele.

Penso que a citação da obra de Kant pode ajudar compreender a situação do protagonista e o seu comportamento durante a guerra em África, sugerido nos próximos capítulos do livro. O protagonista encontra-se numa situação nova, que não tem ligações com a sua vida anterior: o céu estrelado sobre ele é desconhecido, misterioso, talvez até assustador. Está sozinho, sem família nem amigos, e por isso parece-lhe que começe uma vida totalmente diferente - e na verdade assim é, porque a realidade da guerra não tem muito a ver com o tempo da paz. Das palavras do Kant podemos tirar uma conclusão importante: o céu sobre o homem é ligado à lei moral que o homem tem dentro de si. A realidade da guerra é muito cinzenta: o branco do moral e o preto do imoral misturam-se, as leis quebram-se; a regra de não-matar já não é válida, porque a matança torna-se numa obrigação, e o mesmo acontece com outras regras e leis, criando uma confusão profunda no lei moral dentro do homem, que tem de se adaptar para esta nova situação.
Hierarquia de necessidades criada por Maslow
Porque acho isto tão importante? No livrOs Cus de Judas podemos encontrar alusões como o protagonista se comportava em Angola: por exemplo podemos supor que ele violava mulheres africanas, e que era cruel. E, na minha opinião, é muito fácil criticar ele, quando estamos nas suas casas onde temos tudo de que precisamos: a comida, a paz, o amor, a segurança, então podemos atingir todos os níveis da hierarquia de necessidades de Maslow. E o que acontece com o protagonista do livro? Na verdade ele nem pode satisfazer as necessidades mais baixas, o que o torna frustrado, irritado, cansado. Quando adicionamos à isto a desordem moral da guerra, podemos ver as condições malíssimas dele. Tudo o que lhe rodeava foram as estrelas kantianas, que influenciaram o que estava dentro dele: a sua lei moral, destruindo-a.

Na minha opinião é por isso que as pessoas que voltam da guerra nunca mais podem voltar a viver a sua vida anterior. Existem acontecimentos que têm o impacto tão grande no homem, que o mudam completamente. Por isso quando o protagonista volta de Angola, sente-se diferente do que os outros, e eles também não o compreendem. Também a sua família é desiludida, porque esperava um «homem verdadeiro» e não o encontrou nele. Deste modo ele volta para viver na margem da sua própria vida, sozinho e inquietado pelas recordações da guerra.

08/11/2010

Os Cus de Judas C - a dor de criação

«Nunca lhe aconteceu isto, sentir que está perto, que vai lograr num segundo a aspiração adiada e eternamente perseguida anos a fio, o projecto que é ao mesmo tempo o seu desespero e a sua esperança, estender a mão para agarrá-lo numa alegria incontrolável e tombar, de súbito, de costas, de dedos cerrados sobre nada, à medida que a aspiração ou projecto se afastam tranquilamente de si no trote miúdo da indiferença, sem a fitarem sequer?»

Ricardo Gondim - Desilusão

Cada pessoa sem dúvida já experimentou isto. Esta citação faz-me lembrar de alguns momentos quando escrevia algum texto, e de repente sentia que niguém vai perceber os pontos mais importantes por causa da insuficiência das minhas habiliades, ou percebia que ninguém vai se interessar por isso que descrevo.

Este sentimento não é desconhecido a um escritor despercebido que não consegue publicar nenhuma obra na sua vida. E se o futuro vai o julgar diferentemente, ele nunca saberá sobre isso.

Mas a citação pode ter a ver não somente com a escrita, mas por exemplo com uma invenção falhada para qual alguém dedicou toda a sua vida. Ou com um projecto mais comum que não resultou, porque há casos quando alguém decide construir uma casa grande para toda a sua família, e depois fica sozinho entre os quartos vazios, porque todos mudavam de casa.

Todas estas situações trazem consigo a desilusão, a falta de esperança e a amargura.

Os Cus de Judas C - Padrões desmistificados

Padrão de descobrimentos
Na época dos Descobrimentos os Portugueses tinham o hábito de marcar de forma visível as terras achadas. Inicialmente (1415 - 1460) usavam cruzes feitos de madeira, depois começaram a colocar o símbolo da cruz nas rochas, e finalmente formou-se um tipo de padrão feito de rocha, que tinha forma de uma coluna com cruz em cima, e que levava em si todos od símbolos de descobrimentos. (fonte). Os padrões de descobrimentos funcionam como um dos símbolos de Portugal. Mas a visão do protagonista perante os padrões é negativa. Segundo ele, os Portugueses não levam nada positivo para as terras que descobrem, ou, mais propriamente dito, que conquistam. Trazem somente a guerra, e causam nojo, porque são assim: no espelho podem ver somente o escarro.
«Em toda a parte do mundo a que aportamos vamos assinalando a nossa presença aventureira através das padrões manuelinos de latas de conserva vazias, numa subtil combinação de escorbuto heróico e de folha-de-flandres ferrugenta. (...) Sempre apoiei que se erguesse em qualquer praça adequada do País um monumento ao escarro, (...) algo que contribua, no futuro, para a perfeita definição do perfeito português.»

07/11/2010

Os Cus de Judas B - metamorfoses do protagonista

«Aos domingos, a família em júbilo vinha espiar a evolução da metamorfose da larva civil a caminho do guerreiro perfeito (...)»
Mas quais metamorfoses aconteceram na verdade dentro da alma do futuro soldado? A guerra, e a luta para proteger a pátria, tão idealisada pela família, desmistificaram alguns aspectos da vida, anteriormente admiradas pelo protagonista.
Marc Chagall - Violinista Azul
«Em Mafra, sob a chuva, vi correr os ratos entre os beliches na tristeza desmesurada do convento, labirinto de corredores assombrados por fantasmas de furriéis. Em Tomar, onde os peixes sobem do Mouchão para vogarem ao acaso pelas ruas em cardumes cintilantes, construí Jerónimos de paus de fósforo admirados pelas escleróticas amarelas dos pára-quedistas com hepatite. Em Elvas (...) desejei evaporar-me nas muralhas da cidade à maneira dos violinistas de Chagall no azul espess da tela, batendo as desajeitadas asas de cotão das minhas mangas militares, até pousar em Paris para uma revolução de exílio feita de quadros abstractos e de poemas concretos (...)»
O protagonista tem consciência de que a guerra não tem valor positivo nenhum, ri-se dos «padre-nossos nacionalistas», com ironia descreve os agentes da PIDE... Mas tem de tomar parte em tudo isso, e
«eu preguntava a mim próprio o que fazíamos ali, agonizantes em suspenso no chão de máquina de costura do navio, com Lisboa a afogar-se na distância num suspiro derradeiro de hino. (...) Sentia-me como a casa dos meus pais no Verão, sem cortinas, de tapetes enrolados em jornais, móveis encostados aos cantos cobertos de grandes sudários poeirentos, as pratas emigradas para a copa da avó, e o gigantesco eco dos passos de ninguém nas salas desertas.»

31/10/2010

Os Cus de Judas - Influências de Proust?

Marcel Proust
Durante a leitura do livro Os Cus de Judas vejo algumas semelhanças com a obra mais conhecida de Proust (e ao mesmo tempo um dos meus livros preferidos): Em Busca do Tempo Perdido. O que é parecido? Por exemplo o protagonista é ao mesmo tempo o narrador que conta o seu passado com muitos pormenores, num corrente de consciência. Que mais, contando a sua história faz referências às obras da arte e muitas vezes desvia a sua atenção, começando a descrever de que um acontecimento faz-lhe pensar. Mas enquanto o protagonista d'Os Cus de Judas corta rapidamente os rumos 'colaterais' do pensamento, o protagonista do livro Em Busca do Tempo Perdido perde-se nos caminhos das suas reflexões (que podem encher muitas páginas) para depois voltar ao assunto e continuar a história até o próximo desvio. Ambos os livros têm por isso frases longas, às vezes complicadas. E quais são as diferenças? O mundo descrito no livro de António Lobo Antunes é feio, pelo menos eu considero-o assim, e o mundo descrito por Proust tem para mim algo de mágico, o protagonista sabe ver a beleza em quase tudo: em natureza, nas pessoas, nas obras de arte, nos edifícios, no comportamento humano, nos nomes das povoações... E ele também sobreviveu a guerra, viu os homens a morrer, tinha algumas experiências duras (por exemplo a doença). A grande diferença entre os livros está nos protagonistas que têm caráteres diferentes, que vêm o mundo de outra maneira (mas não totalmente outra; agora não vou chatear mais com dezenas de pormenores...), que são psiquicamente diversos. Como normalmente são os homens, por isso penso que ambos os autores conseguiram criar personagens quase vivas, tridimensionais, que não somente têm aparência, que agem e pensam, mas que também têm alma, têm psique.
Há ainda uma diferença: o livro de Marcel Proust é considerado como autobiográfico, e, na verdade, há muitíssimas analogias com a vida do autor. E o autor d'Od Cus de Judas nunca viu a terra de Angola que descreve na sua obra. Não digo que não haja nenhumas referências autobiográficas - não as buscava durante a leitura; mas se há algumas, com certeza não tantas como na obra de Proust.

24/10/2010

Os Cus de Judas A - o Jardim Zoológico 2


A imagem do jardim zoológico inquieta-me. Apareceu já no início do livro, e depois é mencionado mais uma vez, na descrição da família do protagonista. Sabemos que ele morava perto do jardim, que «do quarto (...) enxergava-se a cerca dos camelos». Mas o que me comove são as descrições dos animais e das pessoas que rodeavam o protagonista quando era criança, porque todas são muito naturalistas, até às vezes turpistas. A mulher de amendoins não tinha o cotovelo esquerdo; os homens bebiam muito; as focas lamentavam; o rio agonizava; as aranhas enormas foram congeladas... As palavras escolhidas pelo autor para a descrição da realidade repugnam, inquietam, entristecem. E entre estas comparações, de repente, surgem outras, belas e sublimadas: o professor a patinar faz o protagonista lembrar do «voo difícil dos anjos de Giotto», e as bochechas de Sãozinha são como as de Mae West.


Porque as imagens feias e repugnantes são misturadas com comparações belas, ligadas à arte, à literatura, à cultura alta em geral? Será que a experiência da guerra influenciou a sua olhada pelo passado? Como escreveu Ingarden (``Człowiek i Czas´´ em: Książeczka o Człowieku), as experiências mudam o nosso olhar sobre os acontecimentos passados e nunca podemos saber como foi o passado na verdade e o que sentíamos antes, porque já não sentimos o mesmo e já mudámos por causa das experiências novas.

Daqui vem a minha conclusão: a experiência da guerra, a estadia em África, entre os homens realmente pobres, mudou o seu ponto de vista perante o passado. É possível que por causa disso todo o mundo já lhe parece assim: realmente naturalista. O naturalismo tornou-se para ele numa norma, que existe e que não se pode discutir. E as comparações belas? As referências à arte? Permaneceram no seu cérebro, porque o protagonista é uma pessoa culta, e como conhece as obras, a realidade muitas vezes lhe parece uma obra da arte.
Pensam que pode ser assim? Ou chegaram às outras conclusões?


17/10/2010

Os Cus de Judas A - a testa de Cranach

    

Judite e Holofernes
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Vênus e Cúpido
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A interlocutora do protagonista do livro Os Cus de Judas é uma pessoa misteriosa. Não sabemos nada sobre ela, só isso que ela é adulta, e que tem uma testa de Cranach. Lucas Cranach (1472 - 1553) foi um pintor renascentista, conhecido dos retratos bem trabalhados. Qual deles mostra a senhora mencionada no livro? Cranach tem na sua obra muitas Vênuses de corpos perfeitos, o que pode apontar para a beleza da mulher. Mas, por outro lado, o artista criou também obras nas quais podemos ver a Salomé, a Judite e a Eva - as mulheres da Bíblia. Cada uma delas era uma femme fatal, bela e perigosa. A minha suspeita é que a interlocutora do protagonista do livro tem intenções más. E ele não é desconfiado, como quer recuperar um pouco da infância com ela, relembrando os velhos tempos; quer beijá-la «diante das grades dos leões» e imagina um dia no Jardím Zoológico com ela, cheio de sentimentos e de amor.

16/10/2010

Os Cus de Judas A - uma janela de Chagall.

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Marc Chagall (1887 - 1985) foi nomeadamente pintor, mas também ceramista e gravurista.



A primeira obra de Chagall em vidro foi criada em 1960, quando ele começou a série de 12 janelas em Jerusalem (Sinagoga no Centro Médico Hadassah-Hebrew). Outra série de 12 janelas pode ser vista na Igreja de Todos os Santos em Tudeley. Outro exemplo da obra de Chagall em vidro está situado no edifício das Nações Unidas.


Marc Chagall - Au Dessus de la Ville
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No livro Os Cus de Judas (na descrição do restaurante do Jardim Zoológico) está mencionada uma pintura de Chagall que mostra noivas volantes. Há muitas telas do artista que tratam do casamento e nas quais podemos ver as noivas a voar. Escolhi uma delas, de qual eu gostei mais, e coloquei aqui para possibilitar criar o ambiente correspondente a o do livro Os Cus de Judas.


15/10/2010

Os Cus de Judas - A


Oceanário de Lisboa
- uma olhada pela janela de vidro grosso.
Foto minha.
«Não sei se lhe parece idiota o que vou dizer mas aos domingos de manhã, quando nós lá íamos com o meu pai, os bichos eram mais bichos» - António Lobo Antunes, Os Cus de Judas.Há momentos em que a vida nos parece mais viva, que vimos e percebemos o mundo usando todos os sentidos. O ritual dos passeios no Jardim Zoológico era assim. Mas, ao mesmo tempo, os sentimentos do protagonista do livro não foram puramente positivos. Ele menciona um lugar de que gosta e um professor quem admirava, mas as impressões do protagonista são descritas com palavras que sugerem tristeza, solidão e inquietação. Os pássaros eram esquísitos, os animais gritavam ou estavam sozinhos nos seus tanques e gaiolas.
«Os plátanos entre as jaulas acinzentavam-se como os nossos cabelos, e afigurava-se-me que, de certo modo, envelhecíamos juntos» - António Lobo Antunes, Os Cus de Judas.

Os Cus de Judas de António Lobo Antunes


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O livro foi editado pela primeira vez em 1979 e trata da experiência de um homem que luta em Angola. Segundo Maria Celeste Pereira, a guerra descrita pelo autor é na verdade uma guerra universal, «em todos os sítios em todos os tempos».
Segundo o prefácio, o objectivo do livro foi «contribuir para que o nosso Povo vire em cada página a sua própria página de identificação e certeza», então os destinatários do livro são os portugueses. Eu não sou de Portugal, mas segundo Ingarden o leitor é o co-criador do texto literário, então vou partilhar a minha interpretação com os outros e espero uma discussão com leitores do livro Os Cus de Judas.

09/10/2010

António Lobo Antunes


António Lobo Antunes
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Nasceu  em Lisboa em 1942. Licenciou-se em Medicina. A partir de 1952 começou a escrever poesia e algumas histórias, e iniciou o seu primeiro romance (nunca publicado) em 1965. Desde 1985 dedicou-se inteiramente à escrita. Ganhou o Grande Prémio APE (Associação Portuguesa de Escritores) em 1985 com o romance Auto dos Danados e em 2000 com o romance Exortação aos Crocodilos. Em 2007 ganhou o Prémio Camões, tendo-lhe sido no mesmo ano atribuído o doutoramento honoris causa pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. As suas obras mais conhecidas, além dos mencionados acima, são: Memória de Elefante, Os Cus de Judas (ambas publicadas em 1979), Conhecimento do Inferno de 1980, Explicação dos Pássaros de 1981, Fado Alexandrino de 1983, As Naus de 1988, Tratado das Paixões da Alma de 1990, A Ordem Natural das Coisas de 1992, A Morte de Carlos Gardel de 1994, Livros de Crónicas de 1995, 2002 e 2006, Manual dos Inquisidores de 1996, O Esplendor de Portugal de 1997, Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura de 2000, Que Farei Quando Tudo Arde? de 2001, Boa Tarde Às Coisas Aqui Em Baixo de 2003, Eu Hei-de Amar Uma Pedra de 2004, Ontem Não Te Vi Em Babilónia de 2006, O Meu Nome é Legião de 2007, O Arquipélago da Insónia de 2008, Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra No Mar? de 2009.
O novo livro, Sôbolos Rios Que Vão, vai ser oficialmente lançado no dia 28 de Outubro, pelas 19H00 no Museu da Água em Lisboa. O livro estará à venda no princípio da próxima semana.