24/10/2010

Os Cus de Judas A - o Jardim Zoológico 2


A imagem do jardim zoológico inquieta-me. Apareceu já no início do livro, e depois é mencionado mais uma vez, na descrição da família do protagonista. Sabemos que ele morava perto do jardim, que «do quarto (...) enxergava-se a cerca dos camelos». Mas o que me comove são as descrições dos animais e das pessoas que rodeavam o protagonista quando era criança, porque todas são muito naturalistas, até às vezes turpistas. A mulher de amendoins não tinha o cotovelo esquerdo; os homens bebiam muito; as focas lamentavam; o rio agonizava; as aranhas enormas foram congeladas... As palavras escolhidas pelo autor para a descrição da realidade repugnam, inquietam, entristecem. E entre estas comparações, de repente, surgem outras, belas e sublimadas: o professor a patinar faz o protagonista lembrar do «voo difícil dos anjos de Giotto», e as bochechas de Sãozinha são como as de Mae West.


Porque as imagens feias e repugnantes são misturadas com comparações belas, ligadas à arte, à literatura, à cultura alta em geral? Será que a experiência da guerra influenciou a sua olhada pelo passado? Como escreveu Ingarden (``Człowiek i Czas´´ em: Książeczka o Człowieku), as experiências mudam o nosso olhar sobre os acontecimentos passados e nunca podemos saber como foi o passado na verdade e o que sentíamos antes, porque já não sentimos o mesmo e já mudámos por causa das experiências novas.

Daqui vem a minha conclusão: a experiência da guerra, a estadia em África, entre os homens realmente pobres, mudou o seu ponto de vista perante o passado. É possível que por causa disso todo o mundo já lhe parece assim: realmente naturalista. O naturalismo tornou-se para ele numa norma, que existe e que não se pode discutir. E as comparações belas? As referências à arte? Permaneceram no seu cérebro, porque o protagonista é uma pessoa culta, e como conhece as obras, a realidade muitas vezes lhe parece uma obra da arte.
Pensam que pode ser assim? Ou chegaram às outras conclusões?


2 comentários:

  1. Gosto muito da tua referência a Roman Ingarden. Quando a li, logo recordei as palavras do próprio Lobo Antunes que proferiu na entrevista com Rodrigo Guedes de Carvalho: «Claro que dá vontade de ir reescrever tudo, mas o problema é que a pessoa que tu eras quando os escreveste já não és». Acho que a concepção de Ingarden corresponde muito à ideia de Lobo Antunes - as nossas experiências fazem com que nós mudamos todo o tempo, muda o nosso modo de olhar, a nossa percepção.

    Quanto às comparações da realidade com a arte, já escrevi algures que percebo isso como mais uma prova do conceito de Pessoa - o que a vida não chega, por isso precisamos da arte para entender e arrumar, sistematizar a realidade. Podemos acrescentar ainda, já que (se me lembro bem) as comparações se referem sobretudo as obras e autores conhecidos mundialmente, que é uma tentativa de universalizar experiências, emoções e observações particulares e muito pessoais. Como se as obras servissem como um meio para transmitir as emoções que o autor sentiu quando viu as coisas que nós não podemos ver.

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  2. Bem visto! Sem dúvida que o Ingarden ajuda muito aqui para compreender este olhar deformado? deformante? do narrador. E poderíamos até postular que todo o discurso é uma tentativa de agarrar o passado? uma espécie de sessão de terapia?

    Agora não compreendo muito bem a referência ao naturalismo. Podes apresentar aqui a tua definição de naturalismo e aprofundar como ele se manifesta na obra?

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