19/12/2010

Os Cus de Judas L - Os relógios de Dali

Salvador Dali
A Persistência da Memória, 1931
«O excesso de luz do aeroporto impedia-me de me confrontar nos vidros com  a minha silhueta hesitante, inclinada como uma cana de pesca para o peixe gordo da mala, com a gravata que as muitas horas de avião haviam decerto desviado da bissectriz dos colarinhos, transformando-a num trapo mole como os relógios de Dali, com as rugas que se acumulavam em torno das pálpebras, à maneira dos vincos concêmtricos de areia dos jardins japoneses; entre o homem que voltava sozinho da guerra à sua cidade e caminhava através de cachos de estrangeiros indiferentes, e nós que nos dirigimos para a saída do bar ao longo de um corredor de nucas e perfis cuja monótona diversidade os aproxima dos manequins da Baixa, petrificados em acenos imóveis de uma inutilidade patética, há apenas a diferença insignificante de alguns mortos na picada, cadáveres que você não conheceu, as nucas e perfis nunca viram, os estrangeiros do aeroporto ignoravam, e que, portanto, são inexistentes, inexistentes, percebe?» (página 81).
Voltando à Lisboa o protagonista do livro percebe, que todo o seu sofrimento era inútil. Ninguém vai o agradecer, ninguém o pode compreender. Ele está sozinho com as suas lembranças da guerra cuja crueldade os outros ignoram, e com as lembranças de mortos que para os lisboetas são inexistentes, porque eles nunca os conheceram. O mundo dos portugueses é totalmente privado de qualquer assunto da guerra em África. E o protagonista vê-se desfeito (psiquicamente) não só por causa da viagem muito longa, mas no primeiro lugar porque já não aguenta mais a guerra que não sai da sua cabeça. Ele está cansado, mole, desfeito, como os relógios de Dali que têm consistência de queijo aquecido, sem forma. Penso que o protagonista seria capaz de fortalecer a sua consistência e começar a nova existência se fosse apreciado pela sociedade; mas, infelizmente, ela nem se dá conta da sua chegada e nem pensa em tentar compreender o protagonista. É mais uma desilusão do homem já bastante humilhado pela vida e castigado por causa da escolha que ele tinha feito na juventude, apoiado pela família: a decisão de ir lutar em África.
Penso também, que a alusão à obra de Dali ''A Persistência da Memória'' não foi feita por acaso. Há inúmeras obras deste artista onde se pode encontrar objectos que perdem as suas formas, mas este quadro tem também um título significante. Sugere que o estágio da alma do protagonista tem z ver com a memória: memória da guerra, dos momentos crúeis, que não querem sair da sua cabeça e influenciam por isso a sua psíquica fortemente.

1 comentário:

  1. Apesar de guerra terminar o protagonista guarda a memoria deste tempo. Ele de um modo simbólico perdeu a sua coulna moral, é mole não tem forma definida. Não é o jovem antes da guerra, nem é soldado da guerra. Chegando a Lisboa ele ainda não tinha tempo nem possibilidade de assumir uma forma nova e não sabemos se será possível, porque a persistencia do tempo, a firmeza daquilo que aconteceu parece ser impossível de mudar. As cicattrizes da guerra ficarão para sempre.

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