22/11/2010

Os Cus de Judas D - Portugal dos Pequeninos

Portugal dos Pequenitos - a entrada
Notaram que além das referências constantes ao Jardim Zoológico, muitas vezes aparecem no texto do livro relações ao Portugal dos Pequeninos? Ambos os lugares são relacionados com a infância. Acham que deste modo o protagonista volta aos tempos mais felizes da sua vida, quando ainda não sabia o que é a guerra e ninguém o forçava para tornar-se um homem verdadeiro? Ou existe outra explicação deste fenómeno? Eu não tenho certeza, mas isso pode ser um tipo da terapia, para lembrar-se de que a existência não tem de ser dura e cheia de dificuldades, e que ele já experimentou uma vida calma e sossegada.

21/11/2010

Os Cus de Judas C - um céu de estrelas desconhecidas

«Duas coisas que me enchem a alma de crescente admiração e respeito, quanto mais intensa e frequentemente o pensamento dela se ocupa: o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim.»
- Fonte: Immanuel Kant, "Werke in sechs Bänden" [Obras em seis volumes], capítulo "Kritik der Praktischen Vernunft" [Crítica da Razão Prática].
São palavras de Immanuel Kant, um filósofo alemão (1724 - 1804). Segundo ele, o céu sobre o homem e a lei moral dentro dele são a prova de que existe um deus sobre o homem e também dentro do homem.

Lembrei-me desta frase quando li seguinte fragmento do livro Os Cus de Judas:
«Lá, fora, um céu de estrelas desconhecidas surpreendia-me: assaltava-me por vezes a impressão de que haviam sobreposto um universo falso ao meu universo habitual (...)»

- António Lobo Antunes, Os Cus de Judas, p.28
Este trecho descreve o que sentia o protagonista do livro quando chegou à Luanda, que era um sítio completamente novo para ele.

Penso que a citação da obra de Kant pode ajudar compreender a situação do protagonista e o seu comportamento durante a guerra em África, sugerido nos próximos capítulos do livro. O protagonista encontra-se numa situação nova, que não tem ligações com a sua vida anterior: o céu estrelado sobre ele é desconhecido, misterioso, talvez até assustador. Está sozinho, sem família nem amigos, e por isso parece-lhe que começe uma vida totalmente diferente - e na verdade assim é, porque a realidade da guerra não tem muito a ver com o tempo da paz. Das palavras do Kant podemos tirar uma conclusão importante: o céu sobre o homem é ligado à lei moral que o homem tem dentro de si. A realidade da guerra é muito cinzenta: o branco do moral e o preto do imoral misturam-se, as leis quebram-se; a regra de não-matar já não é válida, porque a matança torna-se numa obrigação, e o mesmo acontece com outras regras e leis, criando uma confusão profunda no lei moral dentro do homem, que tem de se adaptar para esta nova situação.
Hierarquia de necessidades criada por Maslow
Porque acho isto tão importante? No livrOs Cus de Judas podemos encontrar alusões como o protagonista se comportava em Angola: por exemplo podemos supor que ele violava mulheres africanas, e que era cruel. E, na minha opinião, é muito fácil criticar ele, quando estamos nas suas casas onde temos tudo de que precisamos: a comida, a paz, o amor, a segurança, então podemos atingir todos os níveis da hierarquia de necessidades de Maslow. E o que acontece com o protagonista do livro? Na verdade ele nem pode satisfazer as necessidades mais baixas, o que o torna frustrado, irritado, cansado. Quando adicionamos à isto a desordem moral da guerra, podemos ver as condições malíssimas dele. Tudo o que lhe rodeava foram as estrelas kantianas, que influenciaram o que estava dentro dele: a sua lei moral, destruindo-a.

Na minha opinião é por isso que as pessoas que voltam da guerra nunca mais podem voltar a viver a sua vida anterior. Existem acontecimentos que têm o impacto tão grande no homem, que o mudam completamente. Por isso quando o protagonista volta de Angola, sente-se diferente do que os outros, e eles também não o compreendem. Também a sua família é desiludida, porque esperava um «homem verdadeiro» e não o encontrou nele. Deste modo ele volta para viver na margem da sua própria vida, sozinho e inquietado pelas recordações da guerra.

08/11/2010

Os Cus de Judas C - a dor de criação

«Nunca lhe aconteceu isto, sentir que está perto, que vai lograr num segundo a aspiração adiada e eternamente perseguida anos a fio, o projecto que é ao mesmo tempo o seu desespero e a sua esperança, estender a mão para agarrá-lo numa alegria incontrolável e tombar, de súbito, de costas, de dedos cerrados sobre nada, à medida que a aspiração ou projecto se afastam tranquilamente de si no trote miúdo da indiferença, sem a fitarem sequer?»

Ricardo Gondim - Desilusão

Cada pessoa sem dúvida já experimentou isto. Esta citação faz-me lembrar de alguns momentos quando escrevia algum texto, e de repente sentia que niguém vai perceber os pontos mais importantes por causa da insuficiência das minhas habiliades, ou percebia que ninguém vai se interessar por isso que descrevo.

Este sentimento não é desconhecido a um escritor despercebido que não consegue publicar nenhuma obra na sua vida. E se o futuro vai o julgar diferentemente, ele nunca saberá sobre isso.

Mas a citação pode ter a ver não somente com a escrita, mas por exemplo com uma invenção falhada para qual alguém dedicou toda a sua vida. Ou com um projecto mais comum que não resultou, porque há casos quando alguém decide construir uma casa grande para toda a sua família, e depois fica sozinho entre os quartos vazios, porque todos mudavam de casa.

Todas estas situações trazem consigo a desilusão, a falta de esperança e a amargura.

Os Cus de Judas C - Padrões desmistificados

Padrão de descobrimentos
Na época dos Descobrimentos os Portugueses tinham o hábito de marcar de forma visível as terras achadas. Inicialmente (1415 - 1460) usavam cruzes feitos de madeira, depois começaram a colocar o símbolo da cruz nas rochas, e finalmente formou-se um tipo de padrão feito de rocha, que tinha forma de uma coluna com cruz em cima, e que levava em si todos od símbolos de descobrimentos. (fonte). Os padrões de descobrimentos funcionam como um dos símbolos de Portugal. Mas a visão do protagonista perante os padrões é negativa. Segundo ele, os Portugueses não levam nada positivo para as terras que descobrem, ou, mais propriamente dito, que conquistam. Trazem somente a guerra, e causam nojo, porque são assim: no espelho podem ver somente o escarro.
«Em toda a parte do mundo a que aportamos vamos assinalando a nossa presença aventureira através das padrões manuelinos de latas de conserva vazias, numa subtil combinação de escorbuto heróico e de folha-de-flandres ferrugenta. (...) Sempre apoiei que se erguesse em qualquer praça adequada do País um monumento ao escarro, (...) algo que contribua, no futuro, para a perfeita definição do perfeito português.»

07/11/2010

Os Cus de Judas B - metamorfoses do protagonista

«Aos domingos, a família em júbilo vinha espiar a evolução da metamorfose da larva civil a caminho do guerreiro perfeito (...)»
Mas quais metamorfoses aconteceram na verdade dentro da alma do futuro soldado? A guerra, e a luta para proteger a pátria, tão idealisada pela família, desmistificaram alguns aspectos da vida, anteriormente admiradas pelo protagonista.
Marc Chagall - Violinista Azul
«Em Mafra, sob a chuva, vi correr os ratos entre os beliches na tristeza desmesurada do convento, labirinto de corredores assombrados por fantasmas de furriéis. Em Tomar, onde os peixes sobem do Mouchão para vogarem ao acaso pelas ruas em cardumes cintilantes, construí Jerónimos de paus de fósforo admirados pelas escleróticas amarelas dos pára-quedistas com hepatite. Em Elvas (...) desejei evaporar-me nas muralhas da cidade à maneira dos violinistas de Chagall no azul espess da tela, batendo as desajeitadas asas de cotão das minhas mangas militares, até pousar em Paris para uma revolução de exílio feita de quadros abstractos e de poemas concretos (...)»
O protagonista tem consciência de que a guerra não tem valor positivo nenhum, ri-se dos «padre-nossos nacionalistas», com ironia descreve os agentes da PIDE... Mas tem de tomar parte em tudo isso, e
«eu preguntava a mim próprio o que fazíamos ali, agonizantes em suspenso no chão de máquina de costura do navio, com Lisboa a afogar-se na distância num suspiro derradeiro de hino. (...) Sentia-me como a casa dos meus pais no Verão, sem cortinas, de tapetes enrolados em jornais, móveis encostados aos cantos cobertos de grandes sudários poeirentos, as pratas emigradas para a copa da avó, e o gigantesco eco dos passos de ninguém nas salas desertas.»