27/01/2011

Crónicas de António Lobo Antunes - A Propósito de Ti

diálogo
António Lobo Antunes escreveu também crónicas, que tratam da vida quotidiana e que mostram situações do dia-a-dia. Uma delas, ''A propósito de ti'', comoveu me muito, porque mostra como as desigualdades dos pontos de vista dos homens podem influenciar a vida da família, de um conjunto de pessoas.
«Somos felizes.»
Isso é o ponto de vista do narrador da crónica. Ele enumera as causas: com a sua mulher pagaram a casa, aos domingos visitam a mãe da mulher, gostam da mesma telenovela, conhecem-se muito bem, compraram o cão...
«Somos felizes. Por isso não me preocupei no sábado com o animal muito entretido na praceta e tu atrás dele, de trela enrolada na mão, sem olhares para cima nem dizeres adeus, a andar devagarinho até desapareceres na travessa para a estação dos barcos. Foi anteontem.»
Ele espera. Grava a novela para ela. Quer comprar um microondas para ela ter a comida quente à sua espera. Mas todos sabemos que ela não vai voltar nunca mais. Porque este tipo da felicidade não a agrada, porque as coisas não nos fazem felizes, mas a compreensão, os sentimentos... E parece que eles nem falem consigo! Só quando ela se vai embora, ele ''fala'' com ela, num diálogo imaginário.

Ele não compreende o que é a felicidade para ela, e que ela não foi feliz. E ela não lhe disse nada. Isso acontece frequentemente nas famílias, e, na minha opinião, a falta de diálogo e a falta de tentativas de compreender os outros levam às separações e aos divórcios.

17/01/2011

Os Cus de Judas - reflexões finais

Para resumir as minhas impressões do livro ''Os Cus de Judas'', queria lerembrar aqui vários assuntos que toquei, e também pensar qual é o tema principal do livro.
Uma das características deste livro que mais me inspirou, especialmente no início da leitura, foi a existência de inúmeras relações às obras de arte, que tentava explicar como uma parte da terapia de que o protagonista precisa para voltar à uma vida mais ou menos normal depois de experiência dura da guerra em África. Referindo-se às obras de arte, belas e imutáveis, tenta acreditar de novo na existência da beleza no mundo, e também na existência de valores universais, que ele perdeu por causa da guerra.
Uma outro parte desta terapia seria o acto da escrita.
Mencionei também a importância das lembranças da infância: do Jardim Zoológico e Portugal dos Pequeninos, que podem significar saudades dos tempos passados, felizes porque a guerra ainda não aconteceu. E os tempos que ele descreve depois: a realidade da guerra e depois dela, são mostrados de ponto de vista negativo. Ao contraste com as obras de arte, é sublinhada a feiura, podemos encontrar descrições turpistas, porque assim o protagonista vê o mundo, sob o prisma dos acontecimentos horríveis nos quais tomava parte. Finalmente, fiz algumas comparações do livro ''Os Cus de Judas'' e outras obras literárias, de Proust e de Orwell; neste segundo caso sublinhei as referências à política e à história.
O que me parece mais importante, é o facto da mudança do caráter e da psíquica do protagonista que ocorreu durante a guerra. Isso foi mostrado no esquema da viagem do heroi, que é diferente das viagens que os heróis costumavam fazer nas obras antigas e clássicas. Para mim estas mudanças são o tema principal do livro; mais: em volta delas é construida toda a trama.
Foi a experiência da guerra que obrigou o protagonista a contar a sua história. Tentando encontrar uma terapia para voltar ao estado anterior da sua alma (ao estado da paz e normas morais fixas), fez muitas referências às obras de arte para equilibrar a feiura do mundo que ele começou a ver (o que podemos ver nas suas descrições turpistas). Também para lutar contra esta feiura lembra os tempos da infância, cheios da paz e felicidade - é por isso que ele conta os pormenores do Jardim Zoológico.
Assim eu leio este livro. Não digo que isso seja uma interpretação correcta, porque não sou um crítico nem tenho o conhecimento da literatura tão amplo. Mas, para mim, o livro trata nomeadamente da destruição que um acontecimento horrível pode fazer: o protagonista, por causa da guerra, ficou morto mesmo que sobreviveu. Mas morreram os seus ideais, morreu a sua alma - pelo menos eu vejo isso no seu dor profundo e na sua incapacidade de continuar a viver. Morreu a sua esperança e toda a sua vida anterior que agora lhe parece irreal. deste modo o protagonista tornou-se num homem sem futuro nem passado. Esta realidade pode fazer enlouquecer. Não tenho certeza, mas pode ser que ele já esteja um louco a contar a sua história à uma amiga imaginária... 

10/01/2011

Os Cus de Judas N

fonte
Além das tentativas de permanecer homens, os soldados portugueses não tinham nenhuma possibilidade de ficar impermeáveis à guerra, e ela mudava os continuamente. Até os espíritos mais fortes não podem resistir e ficam somente como «insectos indiferentes, mecanizados para um quotidiano feito de espera sem esperança» (página 101). Segundo o protagonista do livro, eles foram transformados em «peixes mudos (...) treinados para morrer sem protestos».

Mas segundo o protagonista, esta situação que os tornava peixes obedientes e sem possibilidade de protesto, começou já em Lisboa, com as manipulações da sociedade, com a PIDE a vigiar todos os passos de cada cidadão, com o ambiente tenso e cheio de mentiras, porque a censura impedia o pensamento ''impróprio''. Isso mostra muito bem o trecho seguinte:
«Éramos peixes, somos peixes, fomos sempre peixes, equilibrados entre duas águas na busca de um compromisso impossível entre a inconformidade e a resignação, nascidos sob o signo da Mocidade Portuguesa e do seu patriotismo veemente e stúpido de pacotilha, (...) espiados pelos mil olhos ferozes da PIDE, condenados ao consumo de jornais que a censura reduzia a louvores melancólicos ao relento de sacristia de província do Estado Novo, e jogados por fim na violência paranóica da guerra, ao som de marchas guerreiras e dos discursos heróicos dos que ficavam em Lisboa, combatendo, conbatendo corajosamente o comunismo nos grupos de casais do prior, enquanto nós, os peixes, morríamos nos cus de Judas uns após outros (...)» (páginas 101-102)
A situação descrita faz me lembrar de livro de Orwell sobre o ano de 1984, quando todos os cidadãos foram manipulados totalmente pelo estado, a censura foi uma força grande e importante, e a história foi mudada muitas vezes durante a vida de uma pessoa - mas ninguém se preocupava com isso, nem com a vigilança, porque até o pensamento foi quase controlado, ninguém já sabia pensar de outra maneira. Claro que o livro de Orwell não mostra a realidade de Portugal daquela época - seria um exagero - mas nos olhos do protagonista a manipulação da sociedade foi profunda.

«a locutora da rádio da Zâmbia perguntava Soldado português porque lutas contra os teus irmãos mas era contra nós próprios que lutávamos, contra nós que as nossas espingardas se apontavam» (página 103).

19/12/2010

Os Cus de Judas M - a pátria irreal

Lisboa
«O certo é que, à medida que Lisboa se afastava de mim, o meu país, percebe?, se me tornava irreal, o meu país a minha casa, a minha filha de olhos claros no seu berço, irreais como estas árvores, estas fachadas, estas ruas mortas que a ausência de luz assemelha a uma feira acabada, porque Lisboa, entende, é uma quermesse da província, um circo ambulante montado junto ao rio, uma invenção de azulejos que se repetem, aproximam e repelem, desbotando as suas cores indecisas, em rectângulos geométricos, nos passeios, não, a sério, moramos numa terra que não existe, é absolutamente escusado procurá-la nos mapas porque não existe, está lá um olho redondo, um nome, e não é ela.» (página 94).
Já me acontecia várias vezes que quando viajava por algum tempo, toda a minha vida anterior parecia-me um sonho e não a realidade. Esquecia a tridimensionalidade dos meus pais, lembrando-me somente de alguns sorrisos, gestos e sons dispersos das suas falas. O meu quarto não me parecia o meu, nem falando dos meus gatos, que totalmente desapareciam da minha memória. O mesmo aconteceu com o protagonista d' ''Os Cus de Judas'' quando ele estava em África. Tudo o que deixou em Portugal lhe parecia irreal: a sua casa, a sua filha, as ruas de Lisboa, e a sua mulher nem aparecia nas suas lembranças...
É interessante que esquecemos tão depressa, talvez seja um mecanismo útil nos momentos graves como a morte de uma pessoa amada, para não sofrermos demais. Mas no caso do protagonista do livro, as lembranças da casa e da família poderiam ser um tipo de consolação, não acham? E a irrealidade do passado ainda piorava a sua condição psíquica, e foi ela que levou à separação dele com a sua esposa... E o que vocês pensam?

Os Cus de Judas L - Os relógios de Dali

Salvador Dali
A Persistência da Memória, 1931
«O excesso de luz do aeroporto impedia-me de me confrontar nos vidros com  a minha silhueta hesitante, inclinada como uma cana de pesca para o peixe gordo da mala, com a gravata que as muitas horas de avião haviam decerto desviado da bissectriz dos colarinhos, transformando-a num trapo mole como os relógios de Dali, com as rugas que se acumulavam em torno das pálpebras, à maneira dos vincos concêmtricos de areia dos jardins japoneses; entre o homem que voltava sozinho da guerra à sua cidade e caminhava através de cachos de estrangeiros indiferentes, e nós que nos dirigimos para a saída do bar ao longo de um corredor de nucas e perfis cuja monótona diversidade os aproxima dos manequins da Baixa, petrificados em acenos imóveis de uma inutilidade patética, há apenas a diferença insignificante de alguns mortos na picada, cadáveres que você não conheceu, as nucas e perfis nunca viram, os estrangeiros do aeroporto ignoravam, e que, portanto, são inexistentes, inexistentes, percebe?» (página 81).
Voltando à Lisboa o protagonista do livro percebe, que todo o seu sofrimento era inútil. Ninguém vai o agradecer, ninguém o pode compreender. Ele está sozinho com as suas lembranças da guerra cuja crueldade os outros ignoram, e com as lembranças de mortos que para os lisboetas são inexistentes, porque eles nunca os conheceram. O mundo dos portugueses é totalmente privado de qualquer assunto da guerra em África. E o protagonista vê-se desfeito (psiquicamente) não só por causa da viagem muito longa, mas no primeiro lugar porque já não aguenta mais a guerra que não sai da sua cabeça. Ele está cansado, mole, desfeito, como os relógios de Dali que têm consistência de queijo aquecido, sem forma. Penso que o protagonista seria capaz de fortalecer a sua consistência e começar a nova existência se fosse apreciado pela sociedade; mas, infelizmente, ela nem se dá conta da sua chegada e nem pensa em tentar compreender o protagonista. É mais uma desilusão do homem já bastante humilhado pela vida e castigado por causa da escolha que ele tinha feito na juventude, apoiado pela família: a decisão de ir lutar em África.
Penso também, que a alusão à obra de Dali ''A Persistência da Memória'' não foi feita por acaso. Há inúmeras obras deste artista onde se pode encontrar objectos que perdem as suas formas, mas este quadro tem também um título significante. Sugere que o estágio da alma do protagonista tem z ver com a memória: memória da guerra, dos momentos crúeis, que não querem sair da sua cabeça e influenciam por isso a sua psíquica fortemente.

13/12/2010

Os Cus de Judas J - um pouco sobre a Polónia: Chopin

 
Fryderyk Chopin


 «A minha terra é onde o Marechal Saldanha aponta o dedo e o Tejo desagua, obediente, à sua ordem, são os pianos das tias e o espectro de Chopin a flutuar à tarde no ar rarefeito pelo hálito das visitas (...)» (páginas 79-80).

Mísia
A presença de Chopin no livro Os Cus de Judas comoveu-me muito, porque é um dos símbolos do meu país: da Polónia. Isso faz me lembrar duma outra pessoa que vem de Portugal, e que mencionou a presença de Chopin na sua vida (entrevista). Foi Mísia, cantora portuguesa, que deciciu neste ano participar no XIV Festival de Ludwig van Beethoven na Polónia, e cantar canções inspiradas pela obra de Fryderyk Chopin. Ela disse que a sua mãe gostava muito da música de Chopin. «From then on, Chopin has always been with me. Romantic and intemporal… So Polish and universal… sometimes even a little bit mine too…». O projeto de Mísia foi chamado Our Chopin Affair. Além de Mísia ser principalmente a cantora de fado, ela deciciu não arranjar Chopin deste modo, e a única referência ao fado podia ser ouvida na canção Dumka. Segunto Mísia, o fado e a música de Chopin têm algo em comum: a nostalgia misturada com a gota de alegria, e que ambos estão muito ligados com o lugar em que apareceram, e ao mesmo tempo são universais.

A presença de Chopin nas obras de artistas e escritores portugueses agrada-me muito porque é um símbolo da Polónia, e assim ambos os países podem conhecer-se melhor, interessar-se por si mesmos: os Portugueses saber um pouco da cultura polaca e os Polacos interessar-se pelo fado, e outros aspectos da portugalidade. É isso que nós, estudantes, queremos fazer num outro blogue: Luzo-Fuzo.

Os Cus de Judas H, I - a anti-Última Ceia e a insônia


Leonardo Da Vinci, A Última Ceia (1498)
A Última Ceia aparece nas evangélias como a última refeição do Cristo antes da sua morte. A obra mais famosa que trata do tema é o afresco de Leonardo Da Vinci. (1498).
«Formávamos a cada jantar a anti-Última Ceia, o desejo comum de não morrer constituía, percebe?, a única fraternidade possível, eu não quero morrer, tu não queres morrer, ele não quer morrer, nós não queremos morrer, vós não quereis morrer, eles não querem morrer (...)» (página 62).
Este fragmento mais uma vez mostra a crueldade da guerra, a realidade em que a morte pode chegar num momento, quando menos a esperamos.

Porque a Anti-Última ceia? A Última Ceia foi um tipo de despedida do Cristo com os alunos, quando a morte foi algo já inevitável e domesticado. As refeições dos soldados foram diferentes, porque ninguém sabia se vai ver os seus amigos mais uma vez, e a morte, inevitável durante a guerra, não apontaria quem vai levar consigo, e por isso todos estavam inquietos. O Jesus foi calmo, porque foi ele que escolheu a morte, enquanto os soldados não queriam morrer, o que é muito bem visível em citação acima.

A guerra e as inquietações que causa levara o protagonista à insônia, que dura mesmo quando ele volta à casa em Portugal. «Há quanto tempo de facto não consigo dormir?» - pergunta ele (página 67). Sempre ele sente esta inquietação, por isso a guerra faz com que é impossível para o protagonista atingir a paz dos tempos anteriores à guerra (é mais uma justificação para eu colocar a não-chegada à paz no meu esquema da viagem do herói).