19/12/2010

Os Cus de Judas M - a pátria irreal

Lisboa
«O certo é que, à medida que Lisboa se afastava de mim, o meu país, percebe?, se me tornava irreal, o meu país a minha casa, a minha filha de olhos claros no seu berço, irreais como estas árvores, estas fachadas, estas ruas mortas que a ausência de luz assemelha a uma feira acabada, porque Lisboa, entende, é uma quermesse da província, um circo ambulante montado junto ao rio, uma invenção de azulejos que se repetem, aproximam e repelem, desbotando as suas cores indecisas, em rectângulos geométricos, nos passeios, não, a sério, moramos numa terra que não existe, é absolutamente escusado procurá-la nos mapas porque não existe, está lá um olho redondo, um nome, e não é ela.» (página 94).
Já me acontecia várias vezes que quando viajava por algum tempo, toda a minha vida anterior parecia-me um sonho e não a realidade. Esquecia a tridimensionalidade dos meus pais, lembrando-me somente de alguns sorrisos, gestos e sons dispersos das suas falas. O meu quarto não me parecia o meu, nem falando dos meus gatos, que totalmente desapareciam da minha memória. O mesmo aconteceu com o protagonista d' ''Os Cus de Judas'' quando ele estava em África. Tudo o que deixou em Portugal lhe parecia irreal: a sua casa, a sua filha, as ruas de Lisboa, e a sua mulher nem aparecia nas suas lembranças...
É interessante que esquecemos tão depressa, talvez seja um mecanismo útil nos momentos graves como a morte de uma pessoa amada, para não sofrermos demais. Mas no caso do protagonista do livro, as lembranças da casa e da família poderiam ser um tipo de consolação, não acham? E a irrealidade do passado ainda piorava a sua condição psíquica, e foi ela que levou à separação dele com a sua esposa... E o que vocês pensam?

Os Cus de Judas L - Os relógios de Dali

Salvador Dali
A Persistência da Memória, 1931
«O excesso de luz do aeroporto impedia-me de me confrontar nos vidros com  a minha silhueta hesitante, inclinada como uma cana de pesca para o peixe gordo da mala, com a gravata que as muitas horas de avião haviam decerto desviado da bissectriz dos colarinhos, transformando-a num trapo mole como os relógios de Dali, com as rugas que se acumulavam em torno das pálpebras, à maneira dos vincos concêmtricos de areia dos jardins japoneses; entre o homem que voltava sozinho da guerra à sua cidade e caminhava através de cachos de estrangeiros indiferentes, e nós que nos dirigimos para a saída do bar ao longo de um corredor de nucas e perfis cuja monótona diversidade os aproxima dos manequins da Baixa, petrificados em acenos imóveis de uma inutilidade patética, há apenas a diferença insignificante de alguns mortos na picada, cadáveres que você não conheceu, as nucas e perfis nunca viram, os estrangeiros do aeroporto ignoravam, e que, portanto, são inexistentes, inexistentes, percebe?» (página 81).
Voltando à Lisboa o protagonista do livro percebe, que todo o seu sofrimento era inútil. Ninguém vai o agradecer, ninguém o pode compreender. Ele está sozinho com as suas lembranças da guerra cuja crueldade os outros ignoram, e com as lembranças de mortos que para os lisboetas são inexistentes, porque eles nunca os conheceram. O mundo dos portugueses é totalmente privado de qualquer assunto da guerra em África. E o protagonista vê-se desfeito (psiquicamente) não só por causa da viagem muito longa, mas no primeiro lugar porque já não aguenta mais a guerra que não sai da sua cabeça. Ele está cansado, mole, desfeito, como os relógios de Dali que têm consistência de queijo aquecido, sem forma. Penso que o protagonista seria capaz de fortalecer a sua consistência e começar a nova existência se fosse apreciado pela sociedade; mas, infelizmente, ela nem se dá conta da sua chegada e nem pensa em tentar compreender o protagonista. É mais uma desilusão do homem já bastante humilhado pela vida e castigado por causa da escolha que ele tinha feito na juventude, apoiado pela família: a decisão de ir lutar em África.
Penso também, que a alusão à obra de Dali ''A Persistência da Memória'' não foi feita por acaso. Há inúmeras obras deste artista onde se pode encontrar objectos que perdem as suas formas, mas este quadro tem também um título significante. Sugere que o estágio da alma do protagonista tem z ver com a memória: memória da guerra, dos momentos crúeis, que não querem sair da sua cabeça e influenciam por isso a sua psíquica fortemente.

13/12/2010

Os Cus de Judas J - um pouco sobre a Polónia: Chopin

 
Fryderyk Chopin


 «A minha terra é onde o Marechal Saldanha aponta o dedo e o Tejo desagua, obediente, à sua ordem, são os pianos das tias e o espectro de Chopin a flutuar à tarde no ar rarefeito pelo hálito das visitas (...)» (páginas 79-80).

Mísia
A presença de Chopin no livro Os Cus de Judas comoveu-me muito, porque é um dos símbolos do meu país: da Polónia. Isso faz me lembrar duma outra pessoa que vem de Portugal, e que mencionou a presença de Chopin na sua vida (entrevista). Foi Mísia, cantora portuguesa, que deciciu neste ano participar no XIV Festival de Ludwig van Beethoven na Polónia, e cantar canções inspiradas pela obra de Fryderyk Chopin. Ela disse que a sua mãe gostava muito da música de Chopin. «From then on, Chopin has always been with me. Romantic and intemporal… So Polish and universal… sometimes even a little bit mine too…». O projeto de Mísia foi chamado Our Chopin Affair. Além de Mísia ser principalmente a cantora de fado, ela deciciu não arranjar Chopin deste modo, e a única referência ao fado podia ser ouvida na canção Dumka. Segunto Mísia, o fado e a música de Chopin têm algo em comum: a nostalgia misturada com a gota de alegria, e que ambos estão muito ligados com o lugar em que apareceram, e ao mesmo tempo são universais.

A presença de Chopin nas obras de artistas e escritores portugueses agrada-me muito porque é um símbolo da Polónia, e assim ambos os países podem conhecer-se melhor, interessar-se por si mesmos: os Portugueses saber um pouco da cultura polaca e os Polacos interessar-se pelo fado, e outros aspectos da portugalidade. É isso que nós, estudantes, queremos fazer num outro blogue: Luzo-Fuzo.

Os Cus de Judas H, I - a anti-Última Ceia e a insônia


Leonardo Da Vinci, A Última Ceia (1498)
A Última Ceia aparece nas evangélias como a última refeição do Cristo antes da sua morte. A obra mais famosa que trata do tema é o afresco de Leonardo Da Vinci. (1498).
«Formávamos a cada jantar a anti-Última Ceia, o desejo comum de não morrer constituía, percebe?, a única fraternidade possível, eu não quero morrer, tu não queres morrer, ele não quer morrer, nós não queremos morrer, vós não quereis morrer, eles não querem morrer (...)» (página 62).
Este fragmento mais uma vez mostra a crueldade da guerra, a realidade em que a morte pode chegar num momento, quando menos a esperamos.

Porque a Anti-Última ceia? A Última Ceia foi um tipo de despedida do Cristo com os alunos, quando a morte foi algo já inevitável e domesticado. As refeições dos soldados foram diferentes, porque ninguém sabia se vai ver os seus amigos mais uma vez, e a morte, inevitável durante a guerra, não apontaria quem vai levar consigo, e por isso todos estavam inquietos. O Jesus foi calmo, porque foi ele que escolheu a morte, enquanto os soldados não queriam morrer, o que é muito bem visível em citação acima.

A guerra e as inquietações que causa levara o protagonista à insônia, que dura mesmo quando ele volta à casa em Portugal. «Há quanto tempo de facto não consigo dormir?» - pergunta ele (página 67). Sempre ele sente esta inquietação, por isso a guerra faz com que é impossível para o protagonista atingir a paz dos tempos anteriores à guerra (é mais uma justificação para eu colocar a não-chegada à paz no meu esquema da viagem do herói).

10/12/2010

Os Cus de Judas E, G - Larvas de Bosch


 Hieronymus Bosch
O Jardim das Delícias Terrenas
Museu do Prado, Madrid
Quando vejo as obras de Bosch, sempre sinto inquietação misturada com repugnância, porque os homens pintados nas telas são criaturas feas e sem forma, como se não tivessem ossos, e na verdade parecem larvas, como as descreveu António Lobo Antunes no livro Os Cus de Judas (página 39).

Assim o protagonista vê os seus pacientes, leprosos, de quais trata em Gago Coutinho. Deste modo inicia a descrição turpista da condição destes homens:
«Dezenas de larvas informes principiavam a surgir, manquejando (...), larvas de Bosch de todas as idades em cujos ombros se agitavam, como penas, franjas de farrapos, avançando para mim à maneira dos sapos monstruosos dos pesadelos das crianças, a estenderem os cotos ulterados para os frascos de remédio» (página 39)
O mundo Boschiano torna-se real em África. Isso não tem a ver somente com os pacientes, mas com todo o ambiente pelo qual o protagonista é sufocado e humilhado de tal nível que ele próprio se sente como uma das criaturas da tela de Bosch. Assim não é possível viver de modo humano. Bem ilustra isso a citação:
«Você (...) era capaz de respirar dentro de um quadro de Bosch, sufocada de demónios, de lagartas, de gnomos nascidos de cascas de ovo, de gelatinosas órbitas assustadas?» (página 52)
É mais um exemplo de naturalismo no livro Os Cus de Judas. O naturalismo compreendo não como o corrente na literatura de século XIX, mas como o modo brutal mas fiel de mostrar a realidade dura; também a capacidade de descrever situações difíceis sem omitir elementos drásticos, e a tentativa de mostrar a dureza da - neste caso - guerra. António Lobo Antunes, na minha opinião, não escapa de descrever a realidade apoiando-se nas obras da arte, pelo contrário: os quadros que ele menciona servem bem para os leitores poderem imaginar o pesadelo da situação que não conhecem. Uma mera descrição da guerra não seria tão chocante, porque algém que não sobreviveu nenhuma guerra não poderia compreender os sentimentos do protagonista. O quadro que todos podem ver e que causa emoções fortes e parecidas como as que sente o protagonista fazem com que os leitores possam se melhor indentificar com ele.

Um truque parecido podemos encontrar na poesia de Tadeusz Różewicz, por exemplo no poema ''Warkoczyk''. Em vez de descrever a dor dos que foram matados em Oświęcim e a tragédia das suas famílias, o poeta descreve uma trança de uma menina morta de tal modo, que comove muito os leitores - porque é uma imagem que todos são capazes de imaginar, enquanto a realidade de campo de concentração não é imaginável para quem não a conhece.

06/12/2010

Os Cus de Judas - a viagem do herói

A viagem do herói.
Inspiração: Campbell, Joseph (1949): The Hero of a Thousand Faces.
Joseph Campbell criou um esquema universal da estrutura dos mitos, mostrando nele a viagem do herói. Baseando naquele esquema inventei um esquema novo que mostra a viagem do protagonista d'Os Cus de Judas.

No meu esquema existe uma divisão do mundo para o conhecido e o desconhecido, mas compreendo-os diferentemente do que o autor do esquema do ''monomito''. Para mim o mundo conhecido é ao mesmo tempo somente uma imagem da realidade que está na mente do protagonista. O regime salazarista e os ideais da família criaram o mundo do protagonista d'Os Cus de Judas, que antes da sua viagem acreditava que a luta em África foi precisa e que a experiência deste tipo vai torná-lo num homem verdadeiro.
Queria sublinhar ainda que tudo o que nos rodeia tem um impacto grande na nossa visão do mundo. Por isso por exemplo mesmo quando algém está contra o regime político em que vive, esta situação sempre o influencia. O mesmo acontece com a família, os amigos, os mídia - o homem não é impermeável, por isso cada pessoa tem a sua visão do mundo diferente, e não se pode dizer qual delas é a mais verdadeira. A realidade pura fica sempre desconhecida.

O protagonista d'Os Cus de Judas decide deixar o mundo conhecido, ou, melhor, a sua idea do mundo conhecido, e viajar para a África. O começo da viagem é o início das transformações da sua psíquica, e o protagonista chega ao ponto de abismo (quando chega à África, reconhece a situação e fica desiludido, porque os seus ideais tornam-se inválidos). É por isso que marquei este ponto como a ''Desilusão'' (a inspiração foi o esquema da Ola Józiak).

Este momento em que o protagonista compreende que o mundo em que acreditava era falso, é o ponto para as transformações da sua psíquica se tornarem mais rápidas e profundas. Para mostrar a importância destas mudanças, dei no esquema um exemplo: o protagonista já não é capaz de distinguir o que é bom e o que é mal, porque o mundo de todos os seus ideais se tornou nulo.

A confusão que sente o protagonista leva o ao ponto em que as transformações da sua psíquica se tornam fixas. Estabelecem-se na sua cabeça permanentemente, porque o protagonista nunca mais vai ser capaz de acreditar de novo nas suas crenças anteriores por causa da experiência contrária.

Quando regressa da África, é um homem diferente. Há um trecho que mostra bem as dificuldades que ele encontra em Portugal depois da guerra, quando há uma briga entre ele e as pessoas, quando ele se sente como um animal feroz, e uma mulher diz-lhe que todos que voltam da guerra são como ele: bárbaros e sem civilização. 
o discurso
Outro fragmento diz que o protagonista não acredita mais na realiadde que o rodeia, e observa os vizinhos felizes e inconscientes quando abrem as portas nem pensando que estas casas poderiam não pertencer a eles. Tudo para eles é óbvio e natural - assim como era o mundo do protagonista antes da sua viagem. Ele, quando regressa, pode somente tentar viver duma forma considerada como normal, mas as inquietações nunca lhe vão permitir atingir o ponto da paz em que viveu antes da partida.

Para o esquema não ficar muito complicado, decidi fazer um esquema mais detalhado do discurso. A linha recta é a mesma que vai no grande esquema (desde o regresso até o futuro). Queria mostrar aqui que o protagonista tenta atingir o nível da paz anterior, fazendo várias relações com o mundo da arte que conhece, e que lhe parece mais estável. Infelizmente, as suas tentativas nem sempre o levam mais perto da paz interna, porque às vezes a sua raiva muito visível ainda mais o inquieta, como no caso descrito aqui. Em outros casos, como já tinha mencionado várias vezes, a sua escrita e as invocações das obras de arte conhecidas são para ele como uma terapia.