10/12/2010

Os Cus de Judas E, G - Larvas de Bosch


 Hieronymus Bosch
O Jardim das Delícias Terrenas
Museu do Prado, Madrid
Quando vejo as obras de Bosch, sempre sinto inquietação misturada com repugnância, porque os homens pintados nas telas são criaturas feas e sem forma, como se não tivessem ossos, e na verdade parecem larvas, como as descreveu António Lobo Antunes no livro Os Cus de Judas (página 39).

Assim o protagonista vê os seus pacientes, leprosos, de quais trata em Gago Coutinho. Deste modo inicia a descrição turpista da condição destes homens:
«Dezenas de larvas informes principiavam a surgir, manquejando (...), larvas de Bosch de todas as idades em cujos ombros se agitavam, como penas, franjas de farrapos, avançando para mim à maneira dos sapos monstruosos dos pesadelos das crianças, a estenderem os cotos ulterados para os frascos de remédio» (página 39)
O mundo Boschiano torna-se real em África. Isso não tem a ver somente com os pacientes, mas com todo o ambiente pelo qual o protagonista é sufocado e humilhado de tal nível que ele próprio se sente como uma das criaturas da tela de Bosch. Assim não é possível viver de modo humano. Bem ilustra isso a citação:
«Você (...) era capaz de respirar dentro de um quadro de Bosch, sufocada de demónios, de lagartas, de gnomos nascidos de cascas de ovo, de gelatinosas órbitas assustadas?» (página 52)
É mais um exemplo de naturalismo no livro Os Cus de Judas. O naturalismo compreendo não como o corrente na literatura de século XIX, mas como o modo brutal mas fiel de mostrar a realidade dura; também a capacidade de descrever situações difíceis sem omitir elementos drásticos, e a tentativa de mostrar a dureza da - neste caso - guerra. António Lobo Antunes, na minha opinião, não escapa de descrever a realidade apoiando-se nas obras da arte, pelo contrário: os quadros que ele menciona servem bem para os leitores poderem imaginar o pesadelo da situação que não conhecem. Uma mera descrição da guerra não seria tão chocante, porque algém que não sobreviveu nenhuma guerra não poderia compreender os sentimentos do protagonista. O quadro que todos podem ver e que causa emoções fortes e parecidas como as que sente o protagonista fazem com que os leitores possam se melhor indentificar com ele.

Um truque parecido podemos encontrar na poesia de Tadeusz Różewicz, por exemplo no poema ''Warkoczyk''. Em vez de descrever a dor dos que foram matados em Oświęcim e a tragédia das suas famílias, o poeta descreve uma trança de uma menina morta de tal modo, que comove muito os leitores - porque é uma imagem que todos são capazes de imaginar, enquanto a realidade de campo de concentração não é imaginável para quem não a conhece.

2 comentários:

  1. Gostaria que aprofundasses mais a tua noção de neonaturalismo. Chamo-lhe assim à falta de um termo melhor e talvez tu possas sugerir um outro.

    Como sabes, o naturalismo postulava a possibilidade de uma análise científica do real através da linguagem que produziria resultados objectivos sobre a sociedade e o homem e que, em última análise, contribuiria para o progresso da humanidade.

    Como é que estas outras características do naturalismo se integram no estilo de António Lobo Antunes? Por exemplo, tu dizes que é através de obras de arte que se consegue descrever realisticamente os factos. Parece-me haver aqui uma contradição que gostaria que explicasses.

    Infelizmente não conheço o poema de Różewicz. Valeria a pena colocá-lo aqui (em polaco e em português). Pelo que dizes, fico com a impressão de que o mecanismo utilizado por Różewicz diferente pois ele parece truncar a atrocidade do facto, deixando apenas um vestígio do seu resultado que confronta o leitor e o leva a colocar lá o resto, a parte atroz. Como tu dizes, e bem, nos Cus de Judas é-nos dito tudo sem censura, de forma brutal. Mas, repito, não conheço o poema e posso estar enganado, por isso seria bom apresentá-lo aqui.

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  2. para mim os quadros de Bosch não são tão reugnantes como as descrições do romance antuniano. Acho que a palavra tem mais poder do que a imagem. A descrição deixa espaços que cada um de nós preenche segundo a sua sensibilidade. A imagem está já concretisada por isso tem menor impacto. Acho que o quadro ou uma foto que representa a pobreza terá menor impacto do que uma descrição. A descrição além do aspecto visual pode dar-nos informações sobre o estado da alma, sobre coisas que nem sempre podem ser visíveis numa imagem.

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